O pedido que faz Alexsandro aos transeuntes
O BICHO
Assim que colocou os pés na calçada, Alexsandro maravilhou-se. A avenida evo-cava a sensação de liberdade que há tempo ele não experimentava. O trabalho, já o tinha deixado há cinco meses. Até aquele momento as coisas não pareciam melhores. Agora, no entanto, sentia que tinha a oportunidade de recomeçar. Colocou-se a caminhar, para cima e para baixo, enquanto as horas e os carros passavam.
Ele sempre gostou de ficar na rua. Artei-ro, jogava futebol ainda criança nas praças de Butiá, onde nasceu. Um divórcio e 84 quilômetros depois, aos 12 anos, mudou-se para Porto Alegre. Foi morar com a mãe, sua coroa, como a chamava. Passou a jogar futebol nas praças da Vila do IAPI, região residencial dos industriários desde meados da década de 1950.
Logo que se formou no Ensino Funda- mental na Escola Estadual Padre Theodoro
Amstad, começou a trabalhar. Ganhava pouco mais do que o suficiente para comer e para pagar o aluguel, ainda na Vila do IAPI. Casou-se, a mãe faleceu, nasceu um filho, depois outro. Passou a trabalhar na Cootravipa, cooperativa que presta serviços de limpeza e conservação a qual se destaca no ramo da limpeza urbana. Como coordenador das equipes, Alexsandro não precisava colocar as mãos no lixo. O serviço era apenas administrativo.
Agora, oito anos, cinco meses e algumas horas depois, um recomeço. O lixo em suas mãos surpreendia-o. Não era grande novidade, claro, já que dele tirara o sustento ao longo de quase uma década. Mexia para um lado e para o outro, no interior do grande contêiner cinza naquele janeiro quente. Não teve dúvidas de que, livre como agora esta-
va, sem casamento ou casa, não teria alternativa se quisesse sobreviver.

Como no poema de Bandeira, não examinou ou cheirou. Engoliu os restos com voracidade.
Não era um cão, um gato ou um rato. Era um homem.
Quando comecei a apurar esta reportagem, pouco sabia sobre as pessoas em situação de rua. Tinha ciência de que eram muitos, isso sim, mas da janela do carro ou da calçada oposta, não são mais que isso. Com sorte, são coitados, ou então dignos de uma moeda, um lanche ou uma escuta. Costumam virar-se como pedintes, catadores ou vendedores. São 281 mil no Brasil, de acordo com pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada de 2022. Já o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis estimou em 2023 que são mais de 800 mil somente entre os que trabalham com a reciclagem.
É difícil, contudo, acreditar que esses números sejam precisos. A rua é um am-biente de fluxo constante, em que catadores vêm e vão, barracas de lona e papelão são erguidas e removidas, andarilhos somem e voltam a aparecer. Não é raro encontrar pessoas que vivem nas ruas por períodos esporádicos e então encontram oportu- nidades de recomeço.
Mas sempre são muitos, em todos os lugares. Nos bairros da alta e da baixa sociedades. No semáforo da movimentada avenida ou à beira da rodovia. Em qualquer lugar, invisíveis. Encontrei Alexsandro sentado sobre dois edredons velhos enrolados em sa-

cos de lixo, bebendo cachaça de uma garrafa plástica ao lado de seu carrinho de supermercado, cheio de objetos de toda sorte. Roupas, um galão de água, restos de comida. Ele esperava pacientemente a passagem de clientes que entravam pelo estacionamento do supermercado Rissul, na Avenida Presidente Franklin Roosevelt, no bairro São Geraldo, zona norte da Capital. Com o olhar perdido, nada falava. Um homem alto, robusto, de pele parda e cabeça calva, não mais do que 40 anos, para de caminhar e lê, apoiada no colo de Alexsandro, uma mensagem em um pedaço de papelão.
Carrinho em que Alexsandro armazena tudo o que tem, de comida a cobertores